terça-feira, 14 de outubro de 2008

Leito de morte


Roberto respirava calmamente naquela tarde de outono. Mais calmo do que usualmente respirava sempre sentado em sua cadeira de leitura, com os óculos pequenos debruçados sobre o nariz, grande como o do avô. Sempre lhe diziam que era a cara do avô. Nunca entendeu porque não lhe falavam que era a cara do pai, que era igual ao seu avô, mas sempre...a cara do avô. Deitado na cama esticado, Roberto olhava pro teto e não via a tinta branca que subia pelas paredes, não via as manchas de infiltração, não via a lâmpada ou os 60 watts de alegria incandescente; Roberto via um dia, de volta em casa, encontrando seu neto a implicar com a irmã caçula. Via o primeiro passeio de carro e ouvia de novo todos os xingamentos novos que aprendeu naquele dia, via a praça vazia e ele no banco, via ela que não chegava, não chegava nunca! Via a pipoca estourando no microondas, as crianças sentadas no chão da sala, o sinal aberto, o sinal fechado, e ele que nunca se cansou de esperar naquele banco. Via seu pijama de seda, o ventilador de teto, o queijo e a goiabada (sempre juntos), a irritação das despesas, a alegria do carnaval perdido numa cidade estranha sem dinheiro, via a agonia da prova final, o desespero da semana, a dor de estômago, e o paciente que saía contente do seu consultório. Roberto via, sem ver, que o teto se mexia, se moldava a pintar seu próprio rosto, como um reflexo. “Você está velho, meu caro. Mas quanta vida!”. E enquanto o teto outra vez mexia e escorria tinta branca de volta pelas paredes, Roberto pensava nela, via o banco sozinho, a pipa voando, o pé balançando, e a paciência que é infinita quando não se quer estar em nenhum outro lugar. A luz da tarde se apagava pela janela, e Roberto suspirava cada vez mais devagar. Sentia o corpo, a idade, o peso do mundo esmagá-lo contra o travesseiro. Sentia que era muito mais, que tudo era muito mais. Via a pelada na rua de tardinha, a namorada da escola que tinha bigodinho e espinha, a briga na faculdade, a corrida pra maternidade, e o atraso que era sempre um susto. Roberto sentia a brisa do outono, olhava ainda calmo para o teto, vendo sem olhar, sentindo o peso das pálpebras pesadas, o travesseiro afundando, e o banco onde se conheceram, vazio, sem ela, e sem ele, que agora também não iria mais chegar. E enquanto a noite lá fora caía, Roberto, ainda calmo, sabia que era tudo mais, muito mais.

2 comentários:

Maria Lopes disse...

o filme é otimo.. tb não vi inteiro. vamos ver um dia desses?! ;)

banco e morte... rs
adorei.

Kinha disse...

muito, muito bom! Seus textos são sempre muito muito bons. Um dia vou escrever assim...
E Alzira é bem mais divertido que Roberto =P

Just for the record...
Alzira vem de Zaíra.
heheheheheheheh