segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A calçada de Helena


Helena atrasara-se de novo. Corria cautelosa buscando não deixar suas sandálias de um bege bem claro pelo caminho. A calçada estava suja, como de costume, chovia fino, mas mesmo assim um sol fraco já se levantava calmamente ao fundo. Devia ser umas 7, talvez 8, Helena nunca fora boa com as horas. Lembrava-se disso e esboçava um pequeno sorriso enquanto corria pela praça semi-deserta de uma manhã de quarta. Recordava-se constantemente de sua infância, ao menos todas as manhãs de correria por dentre os prédios do centro, a caminha da escola. "Que infância feliz", e sorria pequenos sorrisos de uma menina de chinelos verdes a observar cenas curiosas largada no sofá da sala. Sentia seus passos mais lentos e lembrava-se novamente que estava atrasada. Estava sempre atrasada. Mas agora já lhe era um tanto agradável acordar cedo todas as manhãs (talvez não tão cedo como deveria), levantar da cama com um pulo, buscar o primeiro vestido a sua frente no armário, pegar sua bolsa largada no chão da sala, atravessar a porta e descer o degrau apressada de dois em dois. Chegava sempre cansada, mas sem sono ao colégio, largava sua bolsa na mesa marrom quase na altura de sua cintura e sentava-se na cadeira mais escura com um acolchoado confortável, diferente das cadeiras onde se acomodavam todos os seus alunos. Depois de recuperar o fôlego, e seus pés pararem de lhe doer, levantava-se e retirava da bolsa vinho um monte de papéis bagunçados e uma pequena flauta doce de um dourado fraco e gasto pelo tempo. Os rostos jovens paravam de rir (porque sempre riam de Helena chegando na sala arfando e um pouco suada e recostar por uns 3 minutos em suas confortável cadeira passeando os olhos pelo teto, pelo sol nascendo laranja na janela e pelos rostos dos alunos), mas ainda mantinham um pequeno sorriso na face, um sorriso bom, de quem vai ter aula de música, e não uma aula chata de geografia estudando o efeito estufa e o deslocamento das massas de ar do oceano Atlântico. Há quase 1 ano que Helena dava aula de música na escola São Patrício no interior de Petrópolis. Interior de Petrópolis? Petrópolis era uma cidade tão pequena, não haveria de ter interior, ou centro, deve ser tudo uma coisa só, pensava a Helena estudante de faculdade. Mas lá é sempre frio, um frio bom pra gente poder sair de casa de manhã com um agasalho e quem sabe ver aquela suave fumaça saindo da boca. Pronto, vou para Petrópolis. Soube uns meses antes de se formar que uma amiga de uma amiga de sua amiga dissera que tinha uma escola de Petrópolis que procurava um (ou uma) professor de música. Ouvira também que era uma escola boa e que ganharia bem. Poderia alugar um bom apartamento ali perto e comprar várias roupas de frio. Não precisava de carro para andar por lá, é cidade pequena mesmo. Tomaria um ônibus (podia ter charrete), no máximo compraria uma bicicleta. Há quanto tempo não andava de bicicleta, ainda saberia? Claro, é o que todos dizem não? Assim que terminara a última prova e recebera um pequeno papel enrolado escrito "Helena", "Término" e "Parabéns", Helena já estava de malas prontas, casaco vestido, e uma saia leve cortada de um vestido verde que há muito não mais usava. "Eu não sinto frio nas pernas, mãe!". A mãe fingia-se séria, preocupada, tinham se distanciado um pouco desde que Helena ingressara na faculdade. "Essa faculdade não Helena, é muito longe daqui, irá se cansar", "O que? Música?Mas minha filha...". Pensando bem, nunca foram assim tão próximas, mas agora na hora de se despedir Helena sentia uma estranha vontade de abraçar sua mãe bem forte. Olhava em seu rosto, e via um pequeno choro que insistentemente sua mãe tentava encobrir dando-lhe conselhos sérios sobre trabalho e as responsabilidades de uma vida adulta. Morar sozinha seria um grande passo, tem que ser assídua e pontual sempre na escola, quando juntar um dinheirinho compre uma flauta mais nova, minha filha. Helena ouvia com ternura pela primeira vez as incansáveis recomendações de sua mãe. Sentia que ali estava alguém que realmente se preocupava com ela. Ao invés de desanimá-la, isso lhe deu ainda mais coragem para entrar no ônibus e viajar para uma cidade pequena e fria, onde haveria de ter sempre paz e sossego (e não suar, porque suar era muito ruim). Helena sabia que ali teria sempre uma casa, sempre um sofá velho na sala para se largar, sempre um quarto bagunçado e uma geladeira que rangia nervosamente ao abrirem a porta. E agora sentia-se bem em Petrópolis, não estava fazendo tanto frio assim, é verdade, mas ele haveria de chegar, e ela nem ao mesmo se cansaria ao correr para a escola durante a manhã, nem ao subir os 4 andares de escada carregando as sacolas de compras, nem ajudando a senhora Vevé a descer seu velho piano, herança de seu falecido marido. Helena sentia-se calma, tranqüila, gostava de falar interior, pois lhe transmitia uma ainda maior sensação de serenidade. Não se via muitos carros barulhentos passando, muito menos aqueles carros chatos que trazem uma caixa de som tocando alguma música sempre tediosa e que dá nos nervos. Helena sorria a todo sol laranja de toda manhã alaranjada. Era um dia como o outro, e um dia onde tudo o que Helena tinha que fazer era ir a escola levando sua bonita bolsa vinho e ensinar as crianças às músicas que gostasse, as músicas que todos tocariam juntos e aprenderiam os acordes, a letra, a melodia, e cantariam e ririam e fariam silêncio todos juntos.
- Professora Helena?
- Sim Chiquinho?
- Quando o piano vem?
- Na terça ele já está aqui, meu doce.
E a criança se punha a sorrir enquanto a professora Helena começara a tocar na flauta dourada uma pequena música que todos haviam ouvido na aula anterior. E as pequenas crianças cantavam enquanto Helena mexia seus pés alegremente por baixo da mesa.

Um comentário:

Kinha disse...

Quero conhecer Petrópolis, agora. =)
A vida da Helena me pareceu tão calminha, tão gostosa...
Deu até um apertinho no coração por eu Não saber tocar nenhum instrumento musical.

Lindo, lindo, lindo...