quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Uma vez

Uma vez quando eu era pequeno, e ficava sentado no chão da sala da minha vó comendo bolo (e que era o que eu mais gostava de fazer), eu a ouço entrando pela porta (dava pra saber pelos sininhos pendurados balançando) largando a bolsa em cima da mesa e indo pra cozinha tirar alguma coisa do forno. Pra mim, naquela época, a culinária era um completo mistério (ainda é), e eu não sabia mexer em nada pela cozinha, muito menos no fogão (ainda não sei), então eu continuava apenas sentado sujando o carpete de bolo.

Ouvia minha vó reclamando na cozinha, falando alto, e meu avô sentado na cadeira lendo jornal e revesando sua atenção entre minha vó e a seção de esportes. Fui até a cozinha com a desculpa de pegar mais bolo, passando devagar, só pra ver o que estava acontecendo. Eu era mais curioso naquela época, e mais sem-vergonha também. Minha vó estava arrumada, devia estar voltando da missa. Pelo cheiro de pão fresco, tinha parado na padaria na volta. Meu estômago já começava a roncar sentindo aquele cheiro, e já pensava em passar bastante requeijão no pão e molhar no leite com Nescau pra comer. Minha vó falava alto (como sempre falou), dizia que havia dado um dinheirinho para um garoto na saída da igreja porque ele disse que estava com fome:

- E eu não fui lá na padaria e encontrei o garoto jogando fliperama?!

Minha vó parecia indignada com o fato de o pobre garoto (ou garoto pobre) ter gastado o dinheiro que ela lhe deu pra comprar um pão numa ficha de fliperama. Dizia que agora não ia dar mais dinheiro, mas preferia comprar a comida e dar pro garoto. Não sabia se ela estava indignada com o fato do garoto ter mentido ou de ele ter usado o dinheiro que era pra comida no fliperama. Eu, com a boca cheia de bolo, não conseguia entender direito isso tudo. Pra mim parecia perfeitamente normal que o garoto tivesse gastado o dinheiro no fliperama. Eu o entendia, como se entende que alguém goste de bolo. Se alguém tivesse me dado uma moeda naquele momento eu talvez fosse até um fliperama gastá-la.

Essa história, como muitos outros fatos e lembranças pequenas, que você acha sem importância maior e não entende bem porque, permanecem estranhamente guardadas na memória. E até hoje eu não entendo a indignação da minha vó. Criança come quando tem fome, dorme quando tem sono e brinca na hora de comer e dormir. Criança não está preocupada com a comida de amanhã, nem em ter uma alimentação saudável e balanceada, em comer na hora certa ou em comer brócolis e espinafre. Criança quer se divertir; quer sair na rua mesmo quando tem chuva, quer ficar no sereno e acordada até tarde. E o garoto pobre, na rua sem nada, só tem uma ficha, só uma vida, só uma chance. E depois: game over.

Um comentário:

Kinha disse...

Eita! Até que você tem jeito pra escrever!=)
Brincadeira, o texto ficou muito bom. Só não gostei das fotos. Humpf.