sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Confusão



Cheguei cansado. Abri o portãozinho da frente. Enfiei a chave dificilmente na porta da sala. Atravessei até o quarto me arrastando, e arrastando a maleta na mão,no chão, o paletó. Ela falou comigo, me deu oi ou boa noite, mostrou carinho, e eu atravessei a sala com os olhos pesados buscando a cama. Deitei de sapatos, de lado, virei, com a cara no travesseiro, a maleta no chão, minha gravata me sufocando. A luz acesa da sala, do corredor, o vulto feminino entrando no quarto, falando, reclamando, abrindo o armário e vestindo roupas de dormir. Deitando-se ao meu lado, ainda reclamando, sem me tocar, sem boa noite. Virei a cara do travesseiro, com meus olhos pesados fitei-a dificilmente, vi sua forma deitada ao meu lado, a barriga, os seios, a cabeça. Pedi-lhe um café e voltei a me afundar no travesseiro azul. Dormi. Ela grunhiu, reclamou mais um pouco palavras que para mim não faziam som ou sentido. Reclamou, se virou, e depois levantou. Me deixou dormindo e levantou. Parou de reclamar. Chegou ao banheiro em três passos e fechou a porta. Abriu-a novamente arrumada, pronta, com a roupa perfeita de viagem, o cabelo penteado, o batom na boca. Abriu a porta que corre do armário e atirou as roupas dentro de uma mala grande que havia debaixo da cama. Inclusive umas roupas que eram minhas e que eu não entedia porque ela queria aquilo. Fechou com força, tirou-a da cama e arrastou-se pelo chão, ela e a mala pesada. Deixou a porta aberta, com a luz do corredor entrando no quarto, só para me provocar. Atravessou a sala, como eu antes havia feito, sem abrir a boca. Entrou e saiu, rangendo o portãozinho da frente. Puxou um filho por cada braço, com seus pijamas, e suas malinhas pequenas. Deixou as bonecas dela no quarto e o skate dele no quintal. Cruzaram o quintal sem flores. Ela não reclamava, não falava, e o táxi amarelo também não buzinava. Tacou as malas na mala, e se foi. Me largou. Eu dormindo, e ela me deixou.

Deu uns trocados que deviam estar na minha carteira para o motorista com cara de árabe do táxi e desceu na casa da mãe. Ele ajudou a tirar as malas. A mais pesada ele deixou ela mesmo levar. E a arrastou pelas escadinhas e chorou no ombro da mãe, e ela disse que a havia avisado, e as crianças entraram e queriam fazer bagunça, e comer o bolo da vovó. Mas ela as pôs pra dormir. E dormiu também, com os olhos pesados de sono. Dormiu na cama no meio das crianças, e acordou cansada e com dor de cabeça. Jogou água nos olhos e ligou pra ele. E ele atendeu com aquela voz de sempre, aquela voz que parecia que ele já estava esperando aquele telefone, e falava "alô" só de brincadeira, porque já podia adivinhar quem era. E ela contou-lhe que me deixou, pra sempre, e tentava parecer mais feliz do que estava. Então ele lhe disse algumas palavras bonitas e outras promessas vazias, e ela comprou duas passagens para Madri. Arrastou a mala que ainda não havia desfeito para um outro táxi amarelo com um sujeito de boné de português e bigode e arrastou depois até o portão de embarque, porque não achou nenhum carrinho. Queria levar os filhos, mas eles tinham escola amanhã, e estavam com a boca cheia de bolo. A mãe havia lhe avisado, e o avisou perdeu-se com o frio na barriga do pouso em Madri. Arrastou a mala para um táxi vermelho, que levou um tempo até reconhecer como táxi, e ele trazia uma mala menor, e cheirava a desodorante caro, mas que ela que devia ter-lhe comprado e já esquecera o cheiro. Subiram no hotel e ele lhe fez carícias, se jogaram na cama e beberam champagne, e meu cartão de crédito sambava perdido entre as fronhas. Fazia frio e sua mala não fechava, e o jeito foi jogá-la assim mesmo no bagageiro para o avião poder decolar.

E logo a voz do piloto a acordava para a descida, e logo ela voltava a arrastar a mala que tinha a sensação de ainda não ter aberto para dentro de um táxi amarelo que ela agora achava ser vermelho. Entrou na casa da mãe e pediu outra vez seu ombro para chorar. As crianças voltaram da escola e viam desenho, e ela quis café. Café não, chá. E ela disse que ele não queria compromisso, e apaixonou-se perdidamente por uma menina mais magra e mais moça em Madri.E a mãe relembrou seu aviso, seu aviso sempre previamente avisado, avisador. Ela foi ao banheiro e odiou-se ao espelho, se achou velha e gorda, odiou suas marcas de preocupação na testa e as olheiras fundas na vista, odiou o espelho e o quebrou. E ouvi a voz da mãe, e cansou-se de seus avisos e diz que sabe se cuidar. Reclamou da velha, de si mesma, da demora do táxi, e o motorista magro e pálido com cara de defunto vivo ajudou a arrastar as malas pequenas das crianças para a mala amarela do táxi. Chegaram na casa maior da rua, e ela deu mais de meus trocados. Balançou o portãozinho destrancado e as crianças entraram apressadas pro seus quartos. A menina tinha saudade das bonecas, e o menino esquecera onde pusera seu skate.

Ela arrastou a mala para dentro do quarto, atravessando a sala e o corredor banhado de luz. Deixou-a cair no chão e nem me olhou dormindo, na mesma posição, com a cara afundada no travesseiro. Entrou no banheiro e no segundo seguinte saiu despida, com uma leve camisola, como gostava de dormir. Deitou-se do meu lado, calada, sem me tocar, e sentiu um peso cansado cair sobre seus olhos. Dormiu, e deixou a luz do corredor acesa, como um aviso, para eu me lembrar de tudo, pra eu acordar irritado com a casa toda iluminada pelo sol e aquela luz ali acesa, inútil, gastando meus trocados. Sentia um sol já de tarde me tocando a face pela cortina que balançava no quarto, e com os olhos ainda difíceis de abrir, como que grudados pela remela, e a gravata ainda me sufocando, e meus sapatos que deviam estar sujando a cama, tirei a cabeça do travesseiro e olhei para o lado, e vi seu contorno, sua mesma forma de dormir, passei-lhe a mão pelo cabelo e ela grunhiu e virou-se. Me aproximei e beije-a nas costas, um beijo leve e doce, e ela pareceu estremecer um pouco. Pus a mão em sua coxa mais perto e pedi um café. Ela se mexeu num pequeno instante, passou as mãos pelo seus cabelo e rosto e sentou-se na cama, de costas para mim. Levantou-se depressa sem me olhar, atravessou o quarto rapidamente e disse como quem falava para um quarto vazio: "Vou fazer seu café".

3 comentários:

Bianca de Queiroz disse...

Caraio, que grande.
Pô, peraí.

Kinha disse...

"Everyday things change, but basically they stay the same".

Pra variar, eu associei o seu texto a uma música do Dave. Prometo que vou pensar em algo melhor da próxima vez.
Pera ae... a parte do café me lembrou Cotidiano, de você-sabe_quem.

Sim, o texto que eu escrevi tem muito a ver com a letra de "O Velho e o Moço". Seria o título do post, mas a foto tinha o velho e o mar =P Que me lembrou do livro, que me lembrou da música, que me lembrou da vida.

Vou abandonar seu blog por uns dias, mas prometo que leio tudo quando voltar...
Au revoir!!!
Bisous

Steph Ciciliatti disse...

Eu tenho o direto de me sentir triste ao ler isso?
Não?Ah, tá, ok.

Conheci a Bibs em um tópico.